Origens do Filosofar: na admiração, no espanto, na perplexidade...                   

28/11/2017

Por Harald Pinheiro

É por vezes comum nos encontrarmos diante de algum dilema ou dificuldade do qual não dispomos respostas satisfatórias e que possam preencher as nossas inquietações mais profundas. Quando isso acontece, geralmente temos duas escolhas: a primeira - e mais comum - ocorre quando nos apegamos de maneira mais imediata a respostas simplificadoras, óbvias e reducionistas; àquelas sobre as quais nosso espírito se pacifica e até se deixa orientar passivamente. Essa primeira reação quase sempre acontece quando não suportamos a angustia da ausência de respostas mais completas e mais elaboradas para nossas interrogações. Tendemos, portanto, a nos acovardar e a nos submeter a um rol seletivo de alternativas previamente domesticadas pelo cotidiano comum que nos cerca.

A segunda reação é mais complexa e incomum, já que conduz o espírito de nossa incompreensão a limites ainda maiores, orientando nossa percepção da realidade por meio de perguntas embaraçosas que desafiam a inteligência do homem comum, outrora cativo de respostas prontas, acabadas e imediatistas.

Há dois termos em alemão que nos ajudam a pensar melhor sobre o que falamos acima. As palavras Heimilich e Unheimilich que designam, respectivamente, aquilo que nos é próximo, familiar (Heimilich) e seu oposto, aquilo que nos é distante, estranho (Unheimilich). Aliás, sentimentos que marcam a trajetória de toda aprendizagem inaugural: familiaridade e estranhamento. Essa dupla percepção e entendimento do mundo provoca na Razão humana um aprimoramento fenomenológico de nossa cognição em duas direções distintas. Para muitos capacita-os a uma micro-visão das coisas, sua apreensão mecânica, movida pela crença de obviedade e superficialidade com que as coisas se revelam e se explicam. Àquela percepção do mundo que o filósofo francês, Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), descreveu como "Fé Perceptiva"; para outros (alguns poucos) dirige o espírito cognoscível a uma macro-visão da realidade, em sua busca de totalidade ou intercomplementaridade.

É mais comum (como dissemos acima) tomarmos de empréstimo aquilo do qual estamos habituados e constitui o repertório comum de práticas, saberes e valores do qual estamos mais dispostos, aparecendo com maior frequência e repetição quando enfrentamos alguma dificuldade.

                            O Estranhamento no Olhar Filosófico das Coisas

A atitude de estranhamento face ao que se revela a nossa frente é mais comum do que poderíamos supor inicialmente. Quando crianças o mundo aparece diante de nós sob os sentidos da desconfiança, face a sua estranheza, indiferença e novidade. Nessa fase pueril do espírito humano tudo se revela uma consciência em grau zero de experiência. Por meio de cada vivência o mundo é inaugurado. A realidade é descoberta e descortinada passo a passo ao existir, sempre com novo saber e temperada por um novo sabor. No entanto, essa atitude tende a ser minimizada com o tempo, dada a repetição que atribuímos às experiências de nosso cotidiano. Em pouco tempo a atitude de estranhamento é preterida de importância e sentido, quando frequentemente é submetida e tratada por equações rotineiras, típicas da banalidade da vida cotidiana irrefletida.

Temos na Filosofia Antiga o surgimento de dois termos que configuram, segundo Platão e Aristóteles, verdadeiras fontes inauguradoras do filosofar no Ocidente, a saber, as palavras Admiração (thaumázein) e Espanto (Phatós). A primeira, de sugestão platônica, indica uma disposição para aquilo que nos potencializa o encanto da visão, por meio da ideia de um olhar metafórico. Somos levados a filosofia porque algo em nós se fez admirar, isto é, dirigimos nosso espírito com certo encantamento a algo que nos produziu admiração.

Na tradição latina temos a etimologia de ad-miratio (admirar) e refletere (refletir, reflexão), ambas aproximam-se na medida em que constituem um olhar introspectivo orientado por uma certa razão interior, um certo encantamento do que olhamos, colocando em comunicação os dados empíricos de fora e o sentido interno que tal percepção provoca. A admiração aparece como a primeira de todas as paixões destinadas a tarefa enobrecedora de conhecer. Somos levados a nos apaixonar por aquilo que admiramos. Admiração e espanto constituem, assim, dois importantes suportes vetoriais que iluminam a trajetória inaugural de um conhecimento afetivo do mundo.

Os afetos de admiração e espanto transfiguram como os principais componentes de natureza psicológica do filosofar, co-implicados aqui pelo impulso de conhecer. Soma (Corpo) e Psiqué (Alma) dividem a cena inaugural do espírito que dá vida e sentido às coisas. Embora a tradição filosófica entre os gregos nasça como disposição de uma alma desmaterializada do corpo, desconfio que este princípio vital insurgente do espírito que conhece, também se insurge mediado por uma corporeidade ainda velada entre os filósofos clássicos e que só bem mais tarde, na tradição fenomenológica da filosofia contemporânea, se faz "consciência encarnada do mundo". Fernando Pessoa, dirige sua verve poética ao encontro de uma percepção conjuntiva dessa dupla condição do espírito: "O que em mim sente, está pensando"

Somos tomados por um sentimento que nos liberta da visão comum das coisas imediatas e estimulados a problematizar algo novo, vendo além de sua manifestação física. A percepção física não é mais suficiente para nutrir esse vigoroso e inteligível caminho do espírito. O império das crenças dogmáticas e o reino de catedrais erigidas pelo olhar hermeticamente empírico e mecânico do mundo dão lugar, agora, ao olhar metafísico, que ultrapassa o sentido material das coisas. No puro ato de ver, também carregamos, inconsciente, a sensação de estranhamento pelo qual somos - inadvertidamente - atraídos.




O pintor espanhol Pablo Picasso (1881-1973), um dos mais importantes artistas plásticos do mundo, pintou a tela Guernica em protesto à guerra. A obra, feita para integrar o Salão Internacional de Artes Plásticas de Paris, percorreu toda a Europa e EUA.  Essa obra, de estilo  cubista, apresenta elementos plásticos identificados pelo painel ideográfico,monocromático, que enfoca várias dimensões de um evento, renunciando àrealidade, colocando-se em plano frontal ao espectador. Difícil não se espantar diante dela. A arte também é um convite a reflexão filosófica.

Aristóteles, no esforço de testemunhar o momento inaugural da filosofia se refere ao espanto ou assombro como registro singular desse acontecimento em direção a uma autonomia para pensar e conhecer melhor. Aquilo que nos afeta, incomoda, inquieta tem grande impacto no processo de aprendizagem, isto é, de como aprendemos, por que aprendemos e para que aprendemos. O espanto filosófico se opõe a naturalização do conhecimento. O espanto, ao contrário de ser um instinto repulsivo e acovardado, opera no espírito à semelhança de um catalizador que nos direciona ao desconhecido. É, nesse contexto, um antídoto às opiniões cristalizadas no tempo. A filosofia (epistemé) assumiu desde cedo sua disposição ao confronto com a cultura da (doxa), opinião comum.

Há, contudo, um componente de ambivalência no espanto filosófico: ao mesmo tempo em que sinaliza um desejo de saber, por vezes contido, polido, tímido, represado, denuncia também o reconhecimento de sua própria ignorância. Sedução e repulsa revelam uma lógica incomum desse instinto (natural para Aristóteles) rumo a compreensão de nossa primeira peripécia cognitiva, aquela que atravessa o espírito filosófico pela aventura do conhecimento. Sobre esse aspecto o filósofo alemão, Martin Heidegger (1889-1976), dedicou um belo comentário em sua obra Que é isto, a filosofia? (1971, p. 37-38):

"O espanto também não se esgota neste retroceder diante do ser do ente, mas no próprio ato de retroceder e manter-se em suspenso é ao mesmo tempo atraído e como que fascinado por aquilo diante do que recua. Assim o espanto é a disposição na qual e para a qual o ser do ente se abre. O espanto é a dis-posição em meio a qual estava garantida para os filósofos gregos a correspondência ao ser do ente".

Fernando Pessoa e a Filosofia

No clássico poema O Guardador de Rebanhos, Fernando Pessoa (1888-1935), sob o heterônomo Alberto Caeiro, desvela uma percepção de ruptura entre pensar e ver as coisas, por meio de um profundo estranhamento, face a poética da admiração e espanto do qual a visão se retroalimenta para transver o mundo numa clara reação disjuntiva ao pensamento reflexivo. O poema indica que a tarefa do pensamento é sempre ambicionar algo a mais do qual a visão não pode oferecer em seu desejo de saciedade imediata. O poeta anuncia seu estranhamento ao mundo pelo sentimento de angústia, marcado por um acentuado descompasso entre uma reflexão profunda e a pureza ingênua do olhar imediato. 

Vejamos, abaixo, outra passagem intrigante de Fernando Pessoa (1986, p.206-207):

"Há metafísica bastante em não pensar em nada. O que penso eu do mundo? Sei lá o que penso do mundo! Se eu adoecesse pensaria nisso. Que ideia tenho eu das coisas? Que opinião tenho sobre as coisas e seus efeitos? Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma E sobre a criação do mundo? Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos E não pensar. É correr as cortinas Da minha janela (mas ela não tem cortinas) [...] Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores? A de serem verdes e copadas e de terem ramos. E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar, A nós, que não sabemos dar por elas. Mas que melhor metafísica que a delas, Que é a de não saber para que vivem Nem saber que o não sabem? Constituição íntima das coisas... Sentido íntimo do universo... Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada. É incrível que se possa pensar em coisas dessas. É como pensar em razões e fins Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão. Pensar no sentido íntimo das coisas É acrescentado, como pensar na saúde Ou levar um copo à água das fonte. O único sentido íntimo das coisas. É elas não terem sentido íntimo nenhum."

A escritora e crítica literária, Leyla Perrone-Moisés (1997, p.327), dedicou um belíssimo texto em que "pensar é estar doente dos olhos", utilizando-se da célebre passagem de Fernando Pessoa como título. Nesse texto, a autora elucida a vocação filosófica na poesia de Pessoa, descrevendo a ambivalência entre o simples olhar das coisas e a profundidade reflexiva que esta mesma simplicidade nos excita a pensar. Na passagem abaixo, Fernando Pessoa (1986, p. 204-207) trata dessa ambivalência entre pensar e ver:

Creio no mundo como num malmequer, porque o vejo. Mas não penso nelePorque pensar é não compreender... O mundo não se fez para pensarmos nele (Pensar é estar doente dos olhos). Mas para olharmos pra ele e estarmos de acordo [...] Quem está ao sol e fecha os olhos, começa a não saber o que é o sol. E a pensar muitas coisas cheias de calor. Mas abre os olhos e vê o sol, e já não pode pensar em nada, porque a luz do sol vale mais que os pensamentos de todos os filósofos e de todos os poetas.

Admiração e Espanto nos lançam numa busca irrefreável pela verdade. Nos torna reluzentes numa noite escura. As estrelas talvez simbolizem a imensidão de nossas perguntas face a nossa ignorância. Diz Platão (Teeteto, 155d): "Nosso olho nos faz participar do espetáculo das estrelas, do sol e da abôbada celeste. Este espetáculo nos incitou a estudar o universo inteiro. De lá nasce para nós a filosofia, o mais precioso bem concedido pelos deuses à raça dos mortais".

O filósofo e epistemólogo francês, Gaston Bachelard (1884-1962), em sua obra A Formação do Espírito Científico, frequentemente se referia a dois instintos oposto que dominavam o cenário do conhecimento científico: o espírito formativo (saber aberto e crítico) e o espírito conservativo-conformativo (saber refratário as mudanças). Diz Bachelard (1996, p. 19): "Chega o momento em que o espírito prefere o que confirma seu saber àquilo que o contradiz, em que gosta mais de respostas do que de perguntas. O instinto conservativo passa então a dominar, e cessa o crescimento espiritual".

O filósofo e educador Rubem Alves (1933-2014), em entrevista ao Programa Roda Viva (2003), refere-se a metáfora pedagógica, geralmente atribuida ao poeta português, Fernando Pessoa, sobre a função da admiração e do espanto como a grande tarefa do professor nos dias de hoje ao provocar nos alunos "ereções intelectuais":

"A primeira tarefa do professor é ensinar os alunos a ver, porque o mundo é absolutamente maravilhoso. São coisas fantásticas! O ovo é maravilhoso. Eu escrevi uma crônica sobre o ovo. Ah! Uma concha de caramujo de jardim é maravilhosa, uma teia de aranha é maravilhosa. Há coisas absolutamente fantásticas. E a primeira tarefa do professor é levar os alunos a sentir o espanto dessas coisas. E quando as crianças se sentem espantadas, elas começam a fazer perguntas, porque elas são curiosas. Os gregos diziam que o pensamento começa quando, diante de um objeto qualquer, qual era a palavra que eles usavam? É... fica bestificado. Você olha para o objeto: "Mas como? Mas como? O que é isso?". Nesse momento, a gente sente uma erecção da inteligência. Essa idéia de erecção da inteligência eu peguei do Fernando Pessoa, um dos maiores poetas da língua portuguesa, mencionada no poema "Saudação a Walt Whitman", sob o heterônimo de Álvaro de Campos: "Uma ereção abstrata e indireta no fundo da minha alma", trecho que o entrevistado discute em seu livro Ao professor, com o meu carinho, Ed. Verus, 2004]. Mas é que eu acho realmente que a inteligência se parece muito com o pênis, porque o pênis é um órgão de duas funções, tem uma função excretora, ridícula e está lá, flácido, mas se ele for excitado por alguma coisa, então transformações hidráulicas fantásticas acontecem, e ele tem a possibilidade de ter prazer e de dar vida! E assim é a inteligência. Muitas crianças estão com a inteligência adormecida, quietinha, flácida. E dizem: "Burrinho!" Burrinho nada! Burrinho porque a inteligência e a criança ainda não foram provocadas, portanto a inteligência não teve a sua ereção. Eu acho que a função fundamental do professor é provocar a ereção da inteligência dos alunos."

A Coruja e a Filosofia

Na longa trajetória do homo sapiens desvelou-se um antigo segredo: começamos a pensar para fugir da ignorância. Conhecer é surpreender-se, pois mesmo diante de todas as dificuldades, tensões e conflitos que marcam a natureza adversa do pensar, ainda assim os primeiros filósofos desafiaram a tradição e se insurgiram contra a interdição posta pelos mito, crenças e religiões hegemônicas de seu tempo.

A perplexidade é combustível ao pensamento filosófico e educacional. Não foi em vão que a pedagogia e a filosofia, na tradição escolar e universitária, escolheram a Coruja como representante simbólico de seus saberes e práticas. A coruja possui muitos atributos que associam a aventura do conhecimento: visão noturna, astúcia, curiosidade, enxerga em condições adversas, tem visão de totalidade, é caçadora, seletiva, protetora, sensível e muito desconfiada. A coruja da filosofia é a Coruja de Minerva. Minerva é uma deusa romana. Seu equivalente grego é a deusa Athena. Segundo Hegel, a Coruja de Minerva levanta voo somente ao entardecer, o que alude o papel da filosofia. Ou seja, a filosofia só pode dizer algo sobre o mundo, através da linguagem da razão (visão de profundidade), após os acontecimentos já terem ocorrido. Simboliza também a Razão que explica a História e o sentido das coisas.

Na longa trajetória do homo sapiens desvelou-se um antigo segredo: começamos a pensar para fugir da ignorância. Conhecer é surpreender-se, pois mesmo diante de todas as dificuldades, tensões e conflitos que marcam a natureza adversa do pensar, ainda assim os primeiros filósofos desafiaram a tradição e se insurgiram contra a interdição posta pelos mito, crenças e religiões hegemônicas de seu tempo.

A perplexidade é combustível ao pensamento filosófico e educacional. Não foi em vão que a pedagogia e a filosofia, na tradição escolar e universitária, escolheram a Coruja como representante simbólico de seus saberes e práticas. A coruja possui muitos atributos que associam a aventura do conhecimento: visão noturna, astúcia, curiosidade, enxerga em condições adversas, tem visão de totalidade, é caçadora, seletiva, protetora, sensível e muito desconfiada. A coruja da filosofia é a Coruja de Minerva. Minerva é uma deusa romana. Seu equivalente grego é a deusa Athena. Segundo Hegel, a Coruja de Minerva levanta voo somente ao entardecer, o que alude o papel da filosofia. Ou seja, a filosofia só pode dizer algo sobre o mundo, através da linguagem da razão (visão de profundidade), após os acontecimentos já terem ocorrido. Simboliza também a Razão que explica a História e o sentido das coisas.  

O universo do conhecimento não foi dado aos seres humanos sem o mínimo de esforço da Razão. O exercício do pensamento inaugurado por meio da admiração e espanto que marcou o nascimento da filosofia, entre os gregos no século VI a.C., revela-se, ainda no século XXI, como substância fecunda que mobiliza espíritos livres no caminho para novas e inusitadas aprendizagens. O risco de se lançar na errância de conhecer, capacitou os homens na tarefa de criar usos e sentidos para uma vida refletida. Certamente o processo educativo nutriu-se do fascínio que essas lições - por vezes dolorosas - desempenharam numa trajetória de trocas entre erros, experimentações, saberes, práticas e valores. 


                          Fim do nosso primeiro Texto!!!

                         Manaus, 28 de novembro de 2017.


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